A longa soneca da ursa
A longa soneca da ursa
DO REDATOR DE DESPERTAI! NA FINLÂNDIA
O OUTONO vem chegando no hemisfério norte — é só olhar para as aves no céu migrando para o sul. Querem fugir do inverno rigoroso. Há bandos de estorninhos-malhados batendo as asas — que alegria! Há também grous voando em formação de V — tão imponentes! Olhando para baixo, lá vai a ursa-parda se arrastando com passos pesados. Ela também enfrenta o problema da sobrevivência. Com a aproximação do inverno, a vegetação seca e, com o frio intenso, a terra fica gelada e a neve acoberta os bosques. Para quem tem asas não há problema. É só voar para outras bandas. Mas e a ursa-parda? Bem, ela não tem como sair correndo pelos bosques, agora inóspitos, e migrar para regiões mais quentes. Será que existe uma saída para ela?
Existe, sim, e é bem prática. Ela sabe que, durante o verão, deve se alimentar muito bem a fim de fazer reservas para o inverno e ter condições de hibernar até a primavera. Resumido assim, parece simples. Mas a realidade é bem mais complexa. Imagine como você ficaria, se não comesse nem tomasse líquidos por seis meses! No caso da ursa, para compensar a falta de alimentos e de água, ocorre algo surpreendente durante a longa soneca hibernal. São fases interessantes que devemos analisar.
Verão — trabalho intenso
Para conseguir jejuar por vários meses, a ursa precisa ficar mais robusta e com constituição mais resistente para ter energia de sobra. Não é hora de se preocupar em manter a forma. O importante agora é criar gordura. São camadas de gordura que, em algumas partes do corpo, chegam a ter até oito centímetros de espessura! Se a ordem é comer, nada como as frutinhas silvestres,
bem docinhas, de que ela tanto gosta. Mas ela não é exigente. O que aparecer na frente — raízes, pequenos mamíferos, peixes e formigas — está ótimo. Com a chegada do outono, dos 130 quilos iniciais ela pode ter aumentado para 160 quilos, dos quais um terço é gordura (a essa altura o macho pode estar pesando uns 300 quilos). Está chegando a hora de entrar na toca e mergulhar no sono hibernal. Só que, antes disso, ela precisa parar de se alimentar e evacuar até limpar bem os intestinos. Depois, por uns seis meses ela não come, não urina nem defeca.A toca pode ser uma gruta, um formigueiro abandonado ou debaixo de uma árvore caída. O importante é que seja um lugar tranqüilo. Afinal de contas, ninguém gosta de ser perturbado enquanto dorme. Agora ela precisa providenciar “colchão” e “roupa de cama”. Ela se põe a juntar galhos de espruce, musgo, turfa e outras coisas. O seu “cantinho” precisa ficar bem aconchegante. Na realidade, a toca não costuma ser muito maior do que o necessário para abrigar o volumoso corpo da ursa. Com a neve, a toca fica toda coberta com exceção de um orifício, por onde entra o ar. Só vê essa pequena abertura o observador muito atento.
A soneca
Os animais que se pode dizer que realmente hibernam são alguns mamíferos de pequeno porte, como o ouriço-cacheiro, o morcego e o arganaz. Passam grande parte do inverno em um estado bem semelhante à morte. A temperatura do corpo cai, chegando a ser quase igual à temperatura ambiente. Mas no caso da ursa, a temperatura cai apenas uns 5 graus Celsius, e o sono não é muito profundo. “Não é como se estivesse desacordada. Via de regra, uma vez ao dia ela levanta a cabeça e muda de posição”, explica o professor Raimo Hissa, que há muitos anos pesquisa o sono hibernal dos ursos, na Universidade de Oulu, Finlândia. Mas os movimentos da ursa não passam disso. Em pleno inverno, é difícil ela sair da toca.
Durante esse período, as funções vitais no corpo da ursa operam em ritmo lento, a fim de poupar energia. Os batimentos cardíacos caem para menos de dez por minuto, e o metabolismo diminui bastante. Assim que ela pega no sono gostoso e começa a roncar, inicia-se o processo importante de queima de gordura. A quebra do tecido adiposo supre as calorias e os líquidos necessários para a ursa. Apesar de as funções vitais estarem em ritmo mais lento, o metabolismo produz certa quantidade de dejetos. E agora? Como ela vai se livrar deles, sem defecar e sujar a toca? Isso não é problema para a ursa. O corpo dela simplesmente recicla os dejetos!
O professor Hissa explica: “A uréia, composto de nitrogênio encontrado na urina, é reabsorvida pelos rins e pela bexiga e transportada pelo sistema circulatório até os intestinos, onde é hidrolisada por bactérias e convertida em amônia.” E o mais surpreendente é que essa amônia volta ao fígado para formar novos aminoácidos — a essência das proteínas. Então, na realidade, o que acontece é que os dejetos são convertidos em componentes que formam as proteínas. E essas proteínas mantêm a ursa nutrida durante a longa soneca hibernal.
No passado, os caçadores de ursos esperavam essa época. Dentro da toca, hibernando, os coitados eram presas fáceis. Localizada a toca, esquiadores aos poucos cercavam o local formando uma roda. O urso era acordado e morto. Que crueldade! É por isso que hoje, em quase toda a Europa, é proibido caçar ursos no inverno.
As crias
O urso entrega-se à preguiça o inverno todo, virando de um lado para o outro, na maior tranqüilidade, mas a ursa, não. Ela tem outra coisa em andamento. É que os ursos acasalam no início do verão, mas os óvulos fecundados ficam em fase latente até a ursa se recolher para o sono hibernal. Aí os embriões se implantam na parede do útero e começam a crescer. Em apenas dois meses, em dezembro ou janeiro, a temperatura da ursa sobe um pouco. Ela dá à luz a duas ou três crias. Em seguida, a temperatura cai um pouco, mas não chega a ser tão baixa como antes de ela dar à luz suas crias. Na hora do parto, o urso não está presente. De um lado é bom, porque se estivesse, na certa ficaria muito desapontado. Robusto como ele só, nunca aceitaria minúsculos fracotes, pesando uns 350 gramas, como sendo filhotes seus.
Os ursinhos começam a sugar o leite da ursa, que é muito nutritivo. Só que com isso ela fica ainda mais debilitada. Os filhotes crescem rapidamente e, na primavera, já estão bem “peludinhos” — tão fofos — pesando uns cinco quilos. Dá para imaginar o alvoroço no pequeno “apartamento” da ursa.
Primavera
Estamos no mês de março. O inverno rigoroso já passou. A neve está derretendo. As aves que migraram para o sul estão voltando. No fim do mês, o urso sai da toca hibernal. A ursa ainda não; precisa de mais algumas semanas para descansar. Cuidar das crias é bem exaustivo. Está esgotada.
No fim da longa soneca, a ursa está pele e osso. Nem se compara com o colosso que era no outono. Sumiu toda aquela gordura acumulada. Mas, por incrível que pareça, tirando isso ela continua ágil. Foram tantos meses na “cama” e não tem uma ferida no corpo! Não sabe o que são cãibras nem osteoporose! Sai da toca e depois de algum tempo defeca um verdadeiro tampão formado de dejetos resultantes do metabolismo. Leva umas duas ou três semanas para ela se restabelecer e o organismo voltar ao normal. Aí recomeça a se alimentar. E dá para imaginar como ela está morrendo de fome! O problema é que a natureza está apenas começando a sentir a chegada da primavera, e a vegetação não está desenvolvida ainda. Nos bosques não há muito para se comer. A ursa tem de se contentar com larvas, besouros, ou aproveitar o que sobrou em carcaças abandonadas. Às vezes se vê obrigada a caçar renas.
Os ursinhos estão crescendo. É a ursa que vai educá-los. Eles precisam aprender a se comportar como ursos de verdade. E ela faz isso com muito gosto — tem verdadeira loucura por eles. É como diz um provérbio antigo: “Haja um encontro de um homem com uma ursa privada dos seus filhotes, em vez de com alguém estúpido na sua tolice.” (Provérbios 17:12) Em outras palavras, nenhum dos dois encontros é bom. “Cuidar dos filhotes é uma tarefa e tanto para a ursa. Quando um urso se aproxima, mesmo [que seja] o pai, a ursa mais do que depressa faz com que subam numa árvore, temendo que ele os machuque”, explica Hissa.
Com a chegada do inverno, a ursa leva os ursinhos para o seu covil. No inverno seguinte, já desmamados, terão de arranjar as suas próprias tocas. A ursa já estará ocupada com a próxima ninhada, que deverá estar a caminho.
O sono hibernal da ursa, com todas as suas complexidades bem originais, já não é um grande mistério para o homem. Mas ainda há muitos aspectos que o intrigam. Por exemplo: O que faz a ursa ficar sonolenta e perder o apetite no outono? Como é que ela não fica com osteoporose? Não é fácil descobrir todos os segredos da ursa, e isso é bem compreensível. Afinal, é um direito dela ter certa medida de privacidade!
[Quadro na página 20]
Estudos sobre o sono hibernal do urso
Já por alguns anos, o Departamento de Zoologia da Universidade de Oulu vem fazendo pesquisas fisiológicas sobre os mecanismos envolvidos na adaptação dos animais ao frio. O estudo sobre o urso-pardo europeu teve início em 1988, e ao todo foram observados 20 ursos até o momento. Foram construídas tocas especiais para eles no jardim zoológico da universidade. Com a ajuda de computadores, testes laboratoriais e uma câmara de vídeo, os pesquisadores puderam aprender muito sobre a temperatura corporal, o metabolismo e as atividades do urso, assim como as alterações sanguíneas e hormonais durante o sono hibernal. Universidades de vários países, incluindo uma do Japão, do outro lado do mundo, vêm cooperando nessa pesquisa. É um esforço conjunto da parte de pesquisadores na esperança de descobrir informações que possam ser úteis para resolver problemas relacionados com a fisiologia humana.
[Foto na página 18]
A toca da ursa
[Foto na página 18]
Frutinhas silvestres bem docinhas